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«Acho que consegui escrever e ilustrar aventuras que apelam a todos os géneros.»

Publicado a 18/05/2022, na categoria: Entrevistas, Nuvem de Letras

O ano de 2020 pode ter sido o mais estranho das nossas vidas, mas para Patrícia Furtado significou muito mais do que pandemia e confinamento. Corria o mês de novembro, quando o primeiro volume da coleção Matilde chegou às mãos dos leitores, para divertir e encantar miúdos há demasiado tempo fechados em casa. Uma heroína com poderes para voar e circular à vontade veio mesmo a calhar em tempos de restrições. Entre animais mágicos, lugares misteriosos e amizades para sempre, esta coleção apresenta histórias que oferecem aquilo de que tanto precisamos: sonho, aventura e diversão.

 

Conta-nos um pouco sobre o teu percurso na área da escrita e da ilustração.
O meu percurso na ilustração e na escrita começou assim que aprendi a pegar num lápis e que aprendi a ler e a escrever (um lugar-comum de quase todos os artistas e escritores). Em miúda, passava a maior parte do tempo agarrada aos livros e aos desenhos e, à medida que fui crescendo, começou a ficar óbvio que era por aí que queria seguir, profissionalmente. A certa altura, foi preciso decidir entre os dois amores, e as artes acabaram por ganhar. Tirei o curso de Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes e demorei ainda uns anos a perceber que o meu lugar não era no design, mas sim na ilustração. Ilustrei muitas capas, muitos artigos de jornal e muitos livros infantis enquanto deixava a escrita só para mim. Ideias, histórias e personagens iam-se acumulando numa gaveta imaginária até ao dia em que percebi que podia juntar tudo e ilustrar os meus próprios textos.

 

Como nasceu a ideia da coleção Matilde? Quais são as tuas fontes de inspiração?
A Matilde nasceu de um desafio da minha editora, a Diana Garrido, para que eu criasse uma personagem infantil, de personalidade difícil com um amigo animal. Para inspiração, voltei à minha infância e aos meus interesses de miúda: tinha uma certa obsessão por histórias de bruxas e até colecionava vassouras, que pendurava na parede do meu quarto. Tenho a minha infância muito bem gravada na memória, lembro-me de todos os professores, colegas e amigos, e foi muito fácil ir lá buscar referências. Como é natural, também fui influenciada por todos os livros que li, especialmente pelo universo infantojuvenil, que continua a ser o meu género preferido. Filmes também, animação em particular.

 

Podes falar um pouco sobre o teu método de trabalho? Como fazes a articulação entre o texto e as ilustrações?
O primeiro passo foi desenhar a Matilde, mas a partir daí, escrevi sempre tudo antes de começar a desenhar. Gosto de escrever um capítulo de cada vez, como se fosse um folhetim, e deixar sempre algo pendurado para o próximo. O meu marido, Pedro, é sempre o primeiro a ler, e vou discutindo toda a história com ele. É um diálogo que me ajuda muito a ver por onde vou. Ele também me dá ideias excelentes e filtra algumas das coisas que podem não funcionar. O texto passa pelos olhos de alguns familiares e amigos antes de aterrar no colo carinhoso da editora e da revisora. Todos melhoram o livro. Depois faço as ilustrações baseadas naquilo que fui visualizando na minha cabeça. É um processo mais demorado e custoso, porque as palavras me dão uma liberdade criativa que nem sempre é fácil traduzir em imagens. Como tenho o privilégio de fazer também a paginação, volto sempre a mexer um bocadinho no texto quando o junto às ilustrações. E se não tivesse um prazo de entrega, ficaria eternamente perdida em afinações às duas coisas.

 

Achas que as crianças se vão identificar com as aventuras da Matilde? Quais são os aspetos mais apelativos?
Uma das minhas partes preferidas na escrita e ilustração dos livros da Matilde é a criação das personagens. Gosto muito de pensar em todos os pormenores e dar muita personalidade até às mais secundárias. Por isso, embora não se identifiquem necessariamente com as partes mais fantasiosas da história, as crianças podem sempre reconhecer um pouco de si, dos seus amigos e até dos professores, em várias personagens do livro.
E se os leitores sentirem empatia com as personagens vão importar-se e emocionar-se mais com as dificuldades que têm de atravessar, as decisões que têm de tomar, as alegrias que vão sentir. Vão viajar a seu lado e viver as suas aventuras, e penso ser esse o lado mais apelativo destes livros.

 

De que forma os pais e os professores podem aproveitar esta coleção para ler com os filhos / alunos? Destacas alguma vertente pedagógica?
A Matilde não é uma personagem perfeita. É rebelde, teimosa e nem sempre toma as melhores decisões, mas tento que seja um exemplo de alguém que tenta sempre melhorar, que é muito positiva e corajosa e que não gosta de ideias pré-concebidas. Alguém para quem ler e aprender são atividades tão importantes como voar e conviver com os amigos. Não gosto de histórias com um tom muito pedagógico ou moralizante, mas tento mostrar que as ações têm consequências e há muitos temas que podem ser explorados para acompanhar a leitura. Tento não infantilizar demasiado a linguagem, pelo que estes livros têm sempre palavras novas a descobrir.

 

Achas que a magia dos livros ainda funciona? Como podemos criar mais e melhores leitores?
Claro que funciona. Entrar num mundo diferente e completar o que estamos a ler com a nossa imaginação é uma magia que não se consegue replicar da mesma maneira em cinema, televisão ou videojogos. Mas é preciso um empurrão para levar as crianças a descobrir essa magia, dá um bocadinho mais de trabalho. Penso que é fundamental encher o mundo deles com livros desde que nascem. Deixá-los à mão de semear, ainda que isso possa ser fatal para alguns livros nos primeiros anos. Ler para os miúdos enquanto não o sabem fazer. Incentivá-los a aprender e recontar as histórias. E dar o exemplo, deixá-los ver-nos a ler para que nos possam copiar.

 

Um estudo recente sobre as práticas de leitura demonstra que os rapazes leem menos do que as raparigas. Achas que o nome da coleção pode afastar os rapazes? Como podemos combater os estereótipos de livros para meninas e meninos?
Confesso que não pensei muito no público-alvo quando criei a Matilde. Escrevo para mim, e para a menina de dez anos que eu já fui, na esperança de que haja mais como eu. Escolhi uma heroína porque sinto que a balança ainda tende muito para os heróis masculinos e dei-lhe o cabelo cor-de-rosa que eu gostaria de ter tido, mas, fora isso, não lhe dei uma energia demasiado feminina. Afastei-me naturalmente dos estereótipos porque não têm muito a ver com a minha personalidade, mas nunca pensei muito nisso. Mas agora que está cá fora e que tenho relatos de muitos rapazes que leem e adoram os livros da Matilde, acho que consegui escrever e ilustrar aventuras que apelam a todo os géneros, e isso deixa-me muito feliz. Só não me perguntem como…

 

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