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Nuna: «Eu sonho com o dia em que a diferença, a singularidade de cada um seja uma normalidade.»

Publicado a 13/06/2022, na categoria: Destaque, Entrevistas, Nuvem de Letras

Escrito por Nuna e ilustrado por Lala Berekai, Aventureira Marielle e o Dia da Fotografia (ed. Nuvem de Letras) tem dado muito que falar, provando que o panorama literário infantojuvenil precisa de maior diversidade e inclusão. Nuna e Lala aceitaram o desafio de responder a uma breve entrevista e apontam caminhos para uma escola e uma comunidades mais inclusivas.

Como nasceu a ideia para este livro?

Nuna: A ideia para este livro surgiu quando eu percebi que em Portugal ainda não havia histórias infantis com personagens principais Negras portuguesas e das experiências que nós vivemos em Portugal. Durante o verão de 2020, senti que não podíamos continuar sem termos livros onde o principal foco fosse a diversidade, a representatividade, a inclusão e o empoderamento Negro português.

Lala: Foi graças ao convite da Nuna que tive conhecimento sobre a ideia deste livro. Ela falou-me do projeto, passou-me o texto e fiquei imediatamente entusiasmade por poder fazer parte.

 

Quem é a Marielle?

Nuna: A Marielle é uma criança apaixonada por futebol, por croissants e por ter novas aventuras. Devido às suas traquinices a família decide mudar-se de Lisboa para o sul de Portugal, onde ela poderia brincar na rua mais livremente. A Marielle representa a inocência e o entusiasmo da infância, o desejo de aprender e experimentar. Caraterísticas que, infelizmente, devido à adultificação das raparigas Negras muitas vezes perdem-se muito cedo. A Marielle é o sonho de que todas as meninas Negras possam ser e crescer sem nenhuma limitação, apenas ambição.

Lala: Marielle é uma menina negra portuguesa muito divertida, amigável, cheia de vida, querida, que tem muito orgulho do seu cabelo afro e não tem medo de o mostrar.

 

Qual a importância de ter uma personagem principal negra e uma história ambientada em Portugal?

Nuna: É de extrema importância ter uma personagem principal negra numa história ambientada em Portugal. Se nos meios dos adultos é tabu falarmos do que é a experiência negra em Portugal, então ainda pior é nos meios onde as crianças estão inseridas. É impossível construirmos um Portugal não racista se não falarmos do racismo que este engloba. As próximas gerações não têm que crescer com o racismo como normativa como nós crescemos. Livros infantis que automaticamente repudiam o racismo são livros infantis que constroem adultos que no futuro também o farão. Também são livros que podem ajudar a reeducar adultos que na sua infância precisaram desse tipo de histórias.

Lala: Na minha opinião, a falta de representatividade que tem havido nos media e em livros infantis sempre demonstrou uma grande urgência para existirem mais livros onde crianças de vários grupos de representação se possam rever, e especialmente para que possam sentir orgulho e amor-próprio quando estes livros são protagonizados por pessoas que não fazem parte do padrão branco cis-heteronormativo predominante em Portugal. Um dos objetivos seria quebrar estas noções impingidas em Portugal, pois é um país multicultural e de várias expressões desde orientação e género, e normalizar a inclusividade e celebrar as diferenças.

 

Que leitura fazem da representatividade da atual literatura infantojuvenil? Há diversidade e inclusão?

Nuna: Infelizmente não, na literatura infantojuvenil portuguesa não há diversidade e inclusão. Dificilmente se encontra qualquer livro que prime pela diversidade e pela inclusão. É quase inexistente literatura onde a temática de empoderamento à volta da diversidade seja o foco. Também escassas são as oportunidades para pessoas que pertençam a grupos segregados/minoritários no universo literário português, já para não falar de que as instituições que trabalham na literatura Portuguesa pouco ou nenhuma diversidade têm, não falamos só dos autores. Criei a Marielle também como um protesto a esta normativa nacional.

Lala: Eu já não costumo ler literatura infantojuvenil como dantes, mas tenho conhecimento que já há muito mais abertura sobre temas de representatividade lá fora, felizmente, embora em Portugal ainda não tenha o mesmo tipo de abertura. Receio que tais temas ainda continuem a ser escassos tal como eram no meu tempo. Quando era criança, eram inexistentes.

 

Que outros tipos de personagem gostariam de ver mais representados na ficção para crianças?

Nuna: Eu sonho com o dia em que a diferença, a singularidade de cada um seja uma normalidade. Que seja normal celebrar cada um como é, com os seus aspetos únicos e que o que os torna insubstituíveis. Personagens com deficiência, neurodivergência, diferentes corpos, tamanhos, necessidades, idades, cores, visuais, identidades de géneros, sexualidades, religiões, culturas, localização, entre outros. Que livros que tenham aquilo que nós vemos na rua e muitas vezes dentro de casa, mas não espalhado na nossa literatura. Que a diversidade deixe de ser um ato de bravura, mas a nossa cultura.

Lala: Pessoalmente, claro que gostava de ver mais personagens de mais outras culturas PALOP, em especial Timorense, mas também a cultura Romani, pois são culturas ricas, que também fazem parte do multiculturalismo cá em Portugal e dariam às crianças oriundas doutras culturas a oportunidade de também se sentirem representadas.

 

Como veem a questão do racismo nas escolas e como podemos ajudar a combater esses e outros preconceitos?

Nuna: O racismo nas escolas é uma normativa, já que o sistema de ensino e o nosso próprio país são racistas. Quando a história e o presente do país não são contados com veracidade, a verdadeira experiência das pessoas racializadas não é levada a sério. Não só é necessário reformular o currículo escolar como educar os educadores e trabalhadores que passam o dia com as nossas crianças. Desde consciência de racialização, cultural, étnica e de localização, como uma consciência de privilégio, de legado gestacional e colonial. Um profundo revisionismo histórico com especialistas das áreas de racialização que possam formar os corpos docentes destas escolas como reais educadores antirracistas. E claro que o trabalho não pode ficar-se pelas escolas, tem que ser preenchido em todas as malhas sociais em que as crianças se encontram. O mesmo se aplica para qualquer outro tipo de opressão que se encontre nos meios escolares.

Lala: Para ser muito breve, para mim, um bom começo é pelos livros infantis e incluir nos manuais escolares ou aulas específicas sobre histórias de outras culturas, que contenham experiências e relatos de figuras históricas, que compõem a sociedade multicultural em Portugal. É necessário normalizar as diferenças e a expressão de vários níveis onde as crianças possam ter a oportunidade de se expressar livremente e ajudar a construir um respeito mútuo pelas diferentes experiências, para que se consiga desconstruir desde muito cedo os preconceitos impostos pela sociedade.

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