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Onjali Q. Raúf: «Escrever histórias centradas na crise dos refugiados, no racismo e sexismo históricos, ou até no feminicídio e violência contra as mulheres, enfurece muita gente»

Publicado a 10/08/2023, na categoria: Booksmile, Destaque, Entrevistas

Numa entrevista exclusiva, a autora de sucessos como O Rapaz ao Fundo da Sala, entre outros, fala do seu percurso enquanto escritora e ativista, e da forma como as suas narrativas profundamente humanas têm ajudado a formar leitores e a despertar consciências.

 

Pode falar-nos um pouco da sua infância e juventude? Onde cresceu e como se tornou escritora?

Nasci em Newcastle-Upon-Tyne, no meio de um «tsunami de neve», como a minha mãe costuma dizer. Mas quando tinha à volta de três anos, a minha família mudou-se para Londres, graças à esperança dos meus pais de conseguirem melhores empregos. Os anos da infância que mais marcaram a minha formação foram passados num apartamento num bairro social. Lembro-me de verões intermináveis a brincar e a correr pelas ruas do bairro com os meus amigos, a entrar em casa dos vizinhos para comer sanduíches esquisitas e doces, e a inventar histórias assustadoras.

Foi aí que comecei, de facto, a gostar de contar histórias e de escrever. Além de estar na companhia de amigos incrivelmente imaginativos (uma vez, inventámos uma história sobre uma bruxa que vivia no sétimo andar, que era tão assustadora que nunca conseguimos ir lá acima!), era eu que tinha a responsabilidade, todas as noites, de pôr o meu irmão mais novo a dormir, porque a minha mãe desdobrava-se em três empregos. Para isso, inventava todo o tipo de histórias na hora de adormeceremos. Habitualmente, envolviam ursinhos de peluche a fazer de tartarugas Ninja e She-Ra. A partir de certa altura, comecei a contar essas histórias aos meus colegas, nos intervalos, ou aos professores. Havia uma professora em especial, Mrs. Koumi, que nos encorajava a escrever e a partilhar histórias saídas da nossa imaginação. E nunca mais parei.

Escrevi o meu primeiro (terrível!) romance aos 17 anos, e comecei a escrever uma trilogia infantil sobre chocolate no último ano da universidade. Levei sete anos a escrever à hora de almoço, e durante o trajeto para vários empregos, até ficar suficientemente satisfeita com a história para a mostrar. Mas eu era uma autora sem referências. Sem conhecimentos no meio editorial, sem publicações anteriores, sem qualquer experiência do processo. Por isso levei quase uma década a enviar a minha história a agentes até encontrar um que gostou do primeiro livro da trilogia. Ainda tenho todas as cartas de rejeição (menos três que queimei num acesso de desespero).

Aconteceu que enquanto a minha agente, Sílvia, estava a tentar negociar a venda da trilogia do chocolate, lancei oficialmente o meu trabalho nos campos de refugiados, e depois tive de ser submetida a duas grandes cirurgias para continuar viva. Foi no período de convalescença que escrevi O Rapaz ao Fundo da Sala. Uma história que escrevi para me consolar e ultrapassar a culpa de não poder estar nos campos com as minhas equipas. Enviei-a à Sílvia com uma nota do tipo «estou em recuperação, mas ainda assim a escrever», não pensando muito sobre o assunto. Mas eis que a Sílvia gostou do livro, apresentou-o ao mercado e, em duas semanas, tivemos uma chamada da Hachette.

Esta foi a resposta longa. Resposta curta: demorei muito tempo a chegar lá e a tornar-me uma verdadeira escritora. Para ser honesta, ainda não sei se o sou! Talvez um dia!

 

Os seus livros juvenis têm feito sucesso pelo mundo e Portugal não é exceção. O Rapaz ao Fundo da Sala, em especial, tem merecido os mais rasgados e emotivos elogios. O que tem este livro de especial para tocar tantos leitores?

É maravilhoso ouvir isso. Ainda me espanta, para ser sincera, e muitas vezes penso porque é que o livro teve esse impacto maravilhoso nas pessoas. Acho que a minha resposta é simples, de várias maneiras. Vivemos num tempo em que, tanto adultos como crianças, estamos inundados de notícias. Terríveis, comoventes, esmagadoras. Especialmente no que diz respeito à forma como os nossos líderes e a imprensa global tratam e representam os refugiados não brancos, quer estes estejam a fugir da guerra ou de desastres provocados pelas alterações climáticas. Tudo isto é apresentado de uma forma que nos faz sentir impotentes e até ameaçados. E a maior parte é profundamente racista na sua retórica. Penso que o Ahmet e os outros miúdos da história fazem os leitores pensar em tudo isso. As questões, os comentários racistas, o bullying, em grande medida decalcados da vida real, são apresentados de forma simples e direta, apelando ao que mora nos corações de todos nós: a necessidade de amizade, empatia e amor, verdadeiro e corajoso. Do tipo capaz de ultrapassar todas as barreiras, sejam linguísticas, de raça ou origem. Talvez isso infunda esperança, ou recorde os leitores do poder da amizade, com que terão sido também abençoados, idealmente. Qualquer que seja a razão, estou muitíssimo orgulhosa deste pequeno grupo de crianças imaginadas e as ações que elas inspiraram. A maior das quais é dar aos leitores de todas as idades a coragem para pôr questões que, até então, sentiam-se retraídos em apresentar.

 

Todos os livros abordam temas «difíceis»: refugiados, perda, violência doméstica, racismo, bullying… Como é escrever para crianças e jovens sobre estes temas? Há fronteiras que não ultrapassa? A esperança está sempre presente?

Acho estranho que as pessoas pensem que esses temas difíceis não estão, já, no centro de todos os livros para crianças. Porque o facto é que, quer se trate do Urso Paddington, Harry Potter, O Hobbit ou Cinderela, a maioria das histórias para crianças estão mergulhadas em morte, bullying, medo, e a necessidade de ultrapassar acontecimentos profundamente assustadores. A esse respeito, as minhas histórias não são diferentes ao incluir temas difíceis. O que eu talvez faça de diferente é recusar-me a mascarar esses temas com elementos dos contos de fadas. As histórias, embora sejam ficcionais, desenrolam-se em ambientes que poderiam ser reais e são reconhecíveis, seja qualquer for a parte do mundo em que o leitor vive. São também situadas no presente, e em locais onde as crianças podem ir, se quiserem, seja o palácio de Buckingham ou a catedral de Rochester. Mas o elemento mágico que não deixei de fora é a esperança. Essa imensa esperança que todos transportamos na infância de que algo, alguém, em algum lugar, será capaz de ajudar a resolver o problema que temos em mãos, e depois perceber ei!, sou eu que tenho de fazer isso, que posso fazer isso! A esperança e o humor têm de estar sempre presentes. De outra forma, as histórias, tal como a vida, tornam-se insuportáveis.

Quanto a ultrapassar certas fronteiras, muitos creem que já ultrapassei demasiadas. O simples ato de escrever histórias centradas na crise dos refugiados, ou no racismo e sexismo históricos, ou até no femenicídio e violência contra as mulheres, enfurece muita gente. Mas a esses respondo com a simples verdade de que todos estes temas são reais, sempre presentes e, mais importante, têm um grande impacto nas crianças e nos adultos que elas virão a ser, diariamente. Não é bom para ninguém subestimar a capacidade e as experiências das crianças e fingir que elas não sabem, sentem, veem e ouvem tudo. E muito menos para quem deseja escrever para elas.

 

O que nos pode dizer em relação ao novo livro, O Herói do Autocarro Noturno, que acaba de ser publicado em Portugal? Qual foi a inspiração para esta história? 

Esta história, em retrospetiva, deveria ter sido a primeira a ser escrita. É baseada num sem-abrigo real, chamado Thomas, que conheci quando tinha 14 anos. Ele costumava dormir no exterior da esquadra de polícia, por onde eu passava a caminho da escola. Sendo ridiculamente tímida, não era capaz de lhe perguntar como podia ajudar, por isso comecei a juntar coisas dos meus colegas nos intervalos de almoço, deixando-lhas no caminho de volta a casa, apenas com um sorriso apressado, murmurando “Aqui tem”. Os meus pais descobriram e começaram a dar-me dinheiro extra para o almoço, sempre que possível, para eu lhe comprar umas batatas fritas e uma bebida quente. Isto continuou durante uns anos, quase sempre em silêncio porque continuava a ser demasiado tímida para falar com ele. Até que um dia, o Thomas, o seu carrinho e todos os seus pertences desapareceram. Mais tarde, descobri que ele tinha morrido, e a minha primeira reação, mais do que choque, foi de fúria. Estava profunda e absolutamente furiosa comigo própria por nunca ter conhecido a sua história, ou apenas ter-lhe feito uma das perguntas que fervilhavam no meu interior. Foi a sua morte que me levou a ser voluntária em várias associações de apoio aos sem-abrigo, durante a adolescência, e foi por causa dele que comecei a ouvir histórias sobre o que as mulheres, em especial, passavam. O Herói do Autocarro Noturno é uma celebração do Thomas e de tudo o que ele me deu, porque foi ele que me fez iniciar o caminho que agora sigo.

A história é narrada, não por uma versão da criança que fui, mas por um bully chamado Hector. Ele representa alguns dos muitos miúdos da minha escola que gozavam com o Thomas e lhe chamavam nomes. Nunca percebi o que leva alguém a pensar que tem o direito de gozar e amesquinhar outro ser humano. Quanto mais importunar alguém que está obviamente numa posição vulnerável. Criar o Hector ajudou-me a explorar porque é que os bullies são como são. E como a maioria dos que conheci, na infância e na idade adulta, estavam sempre numa posição de relativo privilégio, atribuí ao Hector um contexto semelhante.

 

Acredita que a literatura infantojuvenil pode ajudar a formar jovens e adultos mais empáticos, solidários e tolerantes?

Sim. Completamente! É mais do que uma mera crença. É um facto. Cada pessoa é apaixonada por alguma forma de narração, sejam livros, manga, jornais, rádio, música, teatro, poesia, cinema, podcasts, comédia, dança. Cada um destes oferece diferentes perspetivas, aventuras e portais, não só para compreender os outros, mas também para sermos compreendidos. O dom da empatia, a verdadeira empatia e o profundo respeito pelas diferenças e as necessidades dos outros, as suas circunstâncias e realidades, tudo começa com histórias. São as nossas rampas de lançamento todos os dias. Esse amor e esse fascínio pelo desafio que se apresenta à nossa imaginação, tudo começa nas histórias que ouvimos, lemos e pelas quais nos apaixonamos na infância. Os livros e contos aos quais regressamos sempre. e queremos ouvir só mais uma vez, forjam as bases para compreendermos não apenas o mundo atual, mas os mundos que antes existiram. Há tanto que a Netflix, TikTok, Instagram, etc., podem fazer. Estas plataformas são apenas ramificações desse baú de literatura que nos formou e foi plantado quando éramos crianças. E dependendo daquilo que nos alimenta e a que somos expostos, podemos alargar ou estreitar não apenas os nossos mundos e a nossa compreensão, mas também o nosso lugar nesses mundos.

 

Pode falar-nos um pouco do seu trabalho para além da escrita? O que faz a organização que fundou, Making Herstory?

A minha escrita, e sou grata por isso, alimenta os dois maiores papéis da minha vida. Um dos quais é a Making Herstory, que presta auxílio a abrigos de mulher e a unidades anti-tráfico, sempre que possível, seja através da doação de bens ou fundos, a construção de salas de aconselhamento para sobreviventes traumatizados, ou trabalho de influência junto dos governos para o reconhecimento e incentivo dos direitos das mulheres e das raparigas a viver vidas seguras e livres de coerção, controlo ou abuso.

A outra é a O’s Refugee Aid Team, através da qual eu e a minha equipa angariamos bens, fundos e consciencialização para as equipas de resposta a refugiados no norte de França. Fazemos também um trabalho de influência contra as políticas profundamente racistas e desumanas do Reino Unido e de outros governos. Estes projetos surgiram antes dos livros, e embora eu gostasse de viver num mundo em que ambos não fossem necessários, e pudesse dedicar-me apenas a escrever, infelizmente o estado atual do mundo obriga a que continue a dividir-me entre estes três mundos.

 

O Herói do Autocarro Noturno

13,91

Livro de Onjali Q. Raúf, a autora multipremiada do bestseller O Rapaz ao Fundo da Sala. Um livro emocionante que nos mostra a realidade dos sem-abrigo, tantas vezes invisíveis e incompreendidos, enquanto exalta a bondade, a amizade e a certeza de que todos temos, dentro de nós, a capacidade de mudar para melhor.

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